quinta-feira, 4 de novembro de 2010

#6 Um olhar


.     Naquela tarde de quinta-feira Clarice se sentia entendiada. Havia feito 6 anos a duas semanas e não se sentia nada maior. Aliás, se sentia só maior para os lados. Desde que sua mãe resolveu lhe dar uma irmãzinha, Clarice começou a se sentir escanteada, com todas as atenções na irmãzinha bonitinha e ela nada; por isso se esvaia comendo, havia engordado 5kg já e sabia que devia parar.
.     Nada poderia explicar como Clarice estava se sentindo naquele momento. Ela sabia que havia algo de extraordinário para acontecer em sua vida, mas ainda não sabia definir o quê; somente o tempo a faria compreender. Sua vida andava quase que na mesma, mesmo sendo ela uma menina muito avançada para sua idade, ainda assim, sentia vontade de brincar de casinha, de boneca, de correr, pular, gritar, dançar.
Clarice não foi e nunca seria uma criança hiperativa, mas apenas uma criança normal.
.     Se por um lado Clarice se sentia triste, amoada, sem nenhum tipo de atenção por parte da família; na escola estava se saía muito bem. Ela praticava esportes como ninguém. Sua mãe até brigava com ela por passar na rua jogando bola e andando de bicicleta, mas ela não se importava, sabia que era só ralhação de mãe. Clarice era fora de sério no quesito futebol/volêi e já se destacava desde cedo das demais. Ela tinha futuro.
.     Eram 16:05 da tarde e a professora do 1º ano já anunciava a "educação física", aquele alvoroço na turma, e Clarice sentia, firme, pulsante em seu coração que aquela era a hora, não sabia de quê, mas que algo muito legal aconteceria.
-Profeee!! A senhora vai deixar as meninas jogarem com os meninos ou não?!
-Clarice, nós vamos ter que fazer separado porque os meninos não querem jogar com as meninas.
-Eles não gostam de perder pra gente né, sora!?
.     A declaração sincera de Clarice fez a professora Ana cair na risada:
-É Clarice, você tem razão!
.     Clarice odiava jogar com as meninas porque a Renatinha, uma garota vinda de São Paulo que era muito exibidinha e chatinha, estava sempre reclamando por nada, dando chiliques, etc. o que Clarice DETESTAVA. Ela gostava de jogar com os meninos porque eles eram simples, jogavam e ponto. Não ficavam "ai, você machucou meu pé, sua coisa!"etc, etc. Clarice dava um baile nos meninos e eles odiavam perder para uma garota.
.     Naquele dia, por acaso, uma jogadora do time de futsal da universidade, que era professora das categorias de base, havia chegado naquela hora na escola para divulgar a escolinha e convocar novos atletas. Seu olhar se deteve no jogo de Clarice. Ela não podia negar, que aquela garotinha sabia jogar. Quase não acreditou no que via. Pediu licença e foi falar com Clarice:
-Oi mocinha, tudo bem?
-Tudo sim, e você?
-Olha, eu sou profe da escolinha de futsal da universidade, você não gostaria de participar com a gente?
-Eu? mas eu só tenho 6 anos, o que eu ia fazer lá?!
-Você iria aprimorar o seu jogo, aprender dribles novos, aprender movimentação, essas coisas...
-Ah, isso é legal... Mas antes eu preciso falar com a minha mãe tá?!
.     Clarice deu um beijo na moça e voltou jogar com as coleguinhas. Mariane se encantou com a simpatia da menina, e não podia negar que estava na frente de uma promessa, adorou Clarice logo de cara.

***

.     A primeira coisa que Clarice comentou quando chegou em casa foi sobre a tal escolinha:
-Mas mãe, é muito legal, eu vou aprender a jogar melhor...!
-Clarice, deixa de bobagem, você é uma menina e não um meninho pra andar jogando bola por aí.
-Tá bom, mas não esqueça que a mãe do Ronaldinho dizia a mesma coisa.
-Ele é ele você é você! Pare de frescuras Clarice. Quando seu pai chegar nós conversaremos sobre isso.
-Mãe, por favor, é importante pra mim, e não tem nada de mais, eu vou continuar sendo menina!
-Não discuta Clarice - diz já a mãe irritada - já disse que isso será discutido mais tarde e ponto final.


***

-Claro que você pode Clarice! Sempre quis ter um filho atleta, ainda mais no futebol, poderemos fazer uma dupla imbatível, o que você acha princesa?
-É isso aí pai![famoso gesto do "yes"]
.     O pai de Clarice não se contia em si de felicidade por sua filha se interessar por futebol. Estava radiante, porém a Dona Maria não se agradava muito da história "menina brinca é de boneca!" Mas, se o marido falou, estava decretado, sem revogação. Sabe-se lá o que deve ter passado pela cabeça da mulher quando viu a filha jogando pela primeira vez. E ela tinha futuro mesmo...
.     É, as coisas estavam avançando, para um outro nível... Clarice estava crescendo... Aos poucos mudando... Com certeza o futuro passado de Clarice ainda esconde muita coisa pela frente.



#Continua

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

#5 O Livro


.     Dona Maria não havia revelado á sua filha, mas ela sabia o quê aquele livro exatamente queria dizer. O mais chocante era que tudo era semelhante. Ela tinha um exemplar daquele mesmo livro, o recebera quando tinha quase 7 anos. E o mais aterrorizante, mas ótimo ao mesmo tempo era que, ela o havia recebido daquele mesmo velhinho que Clarice descrevera, com palavras semelhantes:

"Maria, preciso que me escutes,
Mui jovem és, grande mente e sapiência possui,
eu sei, que ainda não é o tempo...
Mas virá o dia em que tu serás parte de minha Família,
desenvolverás para mim grandes projetos,
ensinará a muitos, e será parte de um propósito maior.
Não te intimides, muitos te perseguirão, mas eu a protegerei.
Um livro deixar-te-ei, agora não saberás o que nele se tem,
Aos poucos saberás.
Prepara-te."

.     Essas lembranças vinham à mente de Maria como raios na velocidade da luz. Não poderia ficar mais feliz em saber que sua filha também fazia parte dessa Família. Mas sabia também que deveria instruir muito Clarice quanto á procedência com aquele misterioso livro, pois queria que ela atalhasse caminhos, para não sofrer tudo o quanto Maria sofreu para descobrir a chave de decodificação do livro - que era muito simples, diga-se de passagem - E pular etapas dolorosas que não eram necessárias.
.     Ficou muito feliz, pois sabia que tudo fazia parte do Propósito. Mas, enquanto o dia de cumprimento deste não chegava, Maria preocupava-se com coisas rotineiras, e de absoluta certeza, sabia que também seria a professora de Clarice.

***

.     Observava a pequena, sentada no chão do quarto, cantarolando e brincando com seus brinquedos com a ingenuidade que só uma criança tem, e divagava: "É minha filha, temos muito que caminhar!".
.     O sorriso espontâneo, infantil de Clarice fez Maria sentir uma paz tão grande, que tinha a certeza, sua filha teria tudo no tempo certo. Naquela época em que viviam, nada era muito fácil, João e Maria não viviam na pobreza, mas também não eram ricos. Nunca faltou nada para a família, a alegria sempre foi um grande marco daquelas pessoas; Mas não gozavam de uma vida folgada.
.     As coisas ao menos estavam bem. Agora Maria pensava por onde começar, afinal, Clarice superava sempre suas expectativas no quesito Rapidez racional. Sabedoria era algo que Maria teria de ter de sobra para ensinar corretamente as coisas que podia, aquilo era tudo muito complicado e muito simples ao mesmo tempo. E era pela complexidade de tudo isso, que Maria se sentia atraída e motivada, certamente que era algo para poucos, ela era privilegiada.


#Continua.